A MESA

"(...) Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?"
Carlos Drummond de Andrade em "A Mesa"

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

ENQUANTO UNS MORREM, OUTROS COMEM - SENTANDO À MESA COM MAIGRET


Enquanto Paris, em especial Montmartre, vive a sua vida boemia e com seus crimes a serem desvendado pelo Comissário Maigret, ele se delicia com a culinária francesa e suas bebidas. Na noite em que o Sr. Maurice Marcia, dono do restaurante La Sardine, seria assassinado, ele quase teve uma congestão alimentar pelo excesso. Não era para menos:

CARDÁPIO I
Bebidas
* Prunelle da Alsácia
* Licor de Framboesa
* Châteauneuf-du-Pape Envelhecido
Prato
* Galinha Empanada

CARDÁPIO II - Almoço em casa, depois de uma farra com os licores, o vinho e uma noite mal dormida
* Pernil
* Batatas com um pouco de óleo
* Salada

CARDÁPIO III - Almoço no restaurante, no decorrer da investigação do assassinato do Sr. Maurice Marcia
* Licor de anis
* Chouriço ou bife

Texto
" Uma vez por mês o doutor Pardon e sua esposa recebiam os Maigret para jantar em seu apartamento do Boulevard Voltaire. Duas semanas depois, eram eles que vinham jantar no Boulevard Richard-Lenoir.
As mulheres aproveitavam para fazer pratos sofisticados, trocar receitas, ao passo que os homens conversavam despreocupadamente, bebendo prunelle da Alsácia ou licor de framboesa.
O jantar fora um sucesso. A sra. Maigret havia preparado galinha empanada, e o comissário buscara na adega uma das últimas garrafas de um Châteauneuf-du-Pape envelhecido, de uma caixa que tinha comprado em um leilão certo dia em que passava pela Rue Drouot.
O vinho era excepcional, e os dois homens não desperdiçaram uma gota. Quantas tacinhas de prunelle beberam depois? O certo é que às duas da manhã, ao despertar sobressaltado, Maigret não se encontrava nas melhores condições." p. 12-13
"(...) - O que você gostaria de comer?
Ele ainda tinha a lembrança da noite anterior que passara com o estômago embrulhado.
- Pernil, batatas com um pouco de óleo e salada verde...
- Só isso? Você não digeriu a minha galinha?
- Digeri, mas acho que Pardon e eu exageramos um pouco na prunelle. Sem falar no vinho." p. 32
"(...) Sem pressa, os dois homens de deslocaram a pé até a brasserie e pararam diante do balcão, já ocupado por vários homens do Quai des Orfèvres.
- Para variar - murmurou Maigret - vou tomar um licor de anis.
(...) O Proprietário veio lhes apertar a mão. Pouco a pouco ficara completamente calvo, mas como isso levava anos, ninguém notava.
- O que tem para o almoço?
- Chouriço... Mas se preferir um bife...
- Chouriço - interrompeu Maigret.
- Para mim também - disse Janvier, fazendo coro.
Entraram em uma sala de restaurante em que só havia quatro mesas ocupadas, duas por advogados. Ali se estava em casa. Maigret tinha seu canto, perto da janela, de onde avistava o Sena e os barcos que passavam (...)." p. 86


Georges Simenon. Maigret e o Informante. L&PM Pocket.

terça-feira, 3 de junho de 2014

"AZEDOS E INFELIZES FRUTOS": desamor e comida ruim em Clarice Lispector


O conto "Feliz Aniversário" é cortante. Ele fatia a nossa alma e as relações familiares com a mesma eficiência de um açougueiro destrinchando uma peça de carne.
Nesta narrativa curta, Clarice, reflete como a comemoração por obrigação se reflete negativamente na comida. É para comer entalado de ódio, remorsos, queixas, resignações e pela desunião. É para comer, mas ficar sonhando com o jantar, se tiver!




CARDÁPIO
* Croquetes
* Sanduiches (presunto)
* Bolo açucarado
* Ponche
* Coca-cola
* Vinho

TEXTO
"Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta." p. 72
"(...) No centro havia disposto o enorme bolo açucarado" p. 72
"Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer fritura, eles riam inquietos (...)" p. 74-75
"Na cabeceira da mesa já suja, os corpos maculados, só o bolo inteiro - ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos." p. 75
"(...) ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforo sequer para a comida da festa, que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. E então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, 'Vamos! todos de uma vez!' - e todos de repente começaram a cantar alto como soldados (...)." p. 75
"A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco." p. 76
" - Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! Assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina." p. 76-77
"Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. (...) As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam de desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda." p. 77
"Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou" p. 78
"O troco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz  aqueles seres risonhos fracos, sem austeridade?" p. 78
" - Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.
- Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosamente a neta roliça e baixinha.
- Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. Que diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy!, ordenou." p. 80
"A nora de Olaria (...) examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga (...)" p. 81
"As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias de expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome (...)" p. 81
" - Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas." p. 82
"Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela (...)" p. 86

Conto "Feliz Aniversario" em Laços de Família de Clarice Lispector. Ed. Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1994

sábado, 24 de maio de 2014

'UM JANTAR SIMPLES' COM "OS BUDDENBROOK"


O jantar inicial, narrado em 8 capítulos, do livro de Thomas Mann: Os Buddenbrook, é a celebração do apogeu econômico e social de uma família burguesa alemã. O livro é a saga de sua decadência. Para este tipo de jantar não podem faltar bons pratos, serviço impecável e boas bebidas. Além das intrigas, ironias, preconceitos de classe, agressões sutis, porém, maliciosas, conflitos por interesses financeiros, galanteios e a gula. E tudo termina com cafés, licores e uma partida de bilhar, até a ruína bater à porta.



CARDÁPIO

A SOPA: Sopa quente de legumes com pão torrado

BEBIDA: Vinho tinto; vinho branco "C.F. Köppen"

ENTRÉE: Peixe

PRATO PRINCIPAL: "Enorme presunto, cor de tijolo, defumado e cozido, acompanhado por um molho de cebolinhas pardo e avinagrado. Junto seguia-se certa quantidade de verduras e legumes (brócolis, batatas etc.) e uma "Panela russa" - uma mistura de frutas conservadas em álcool e de gosto picante.

SOBREMESA:  Pudim de Pletten - uma construção de camadas de macrones, framboesas, biscoitos e creme de ovos e pudim com molho de rum em chamas.

BEBIDA: 3 garrafas de vinho malvasia cor de ouro, velho e doce. Vindas da adega inteiramente cobertas de pó e de teias de aranha

LE PLATEAU DE FROMAGES: Manteiga, queijo e frutas

BEBIDAS: Café e licor

PARA INALAR: Charutos

TRECHOS DO TEXTO
"- Então, como estamos todos com apetite, mesdames et messieurs...
Ida Jungmann e a empregada abriram os dois batentes da porta branca que dava para a sala de jantar. Lentamente, num andar confiante, os convidados a transpuseram. Na casa dos Buddenbrook podia-se contar com comida farta... p. 18
(...) com a ajuda de Ida e da empregada  da consulesa, do segundo andar, acabara de servir a sopa quente de legumes e o pão torrado. As colheres, cautelosamente, puseram-se em movimento. p. 22
(...) - Então, prezado senhor cônsul - disse o Pastor Wunderlich com um sorriso prudente, vertendo vinho tinto no seu copo e no vizinha -, então o senhor acha que, sem a associação com Geelmaack e sem aquela sua conduta desenfreada, tudo teria acontecido do mesmo modo? p. 24
(...) Lebrecht Kröger replicou:
- não, senhoes, prefiro agarra-me ao alegre presente.
Com gesto cauteloso e elegante, empunhou o gargalo da garrafa de vinho branco em cuja rolha se erguia um pequeno cervo de prata. Inclinando-a um pouquinho, olhou atentamente o rótulo e leu o nome 'C. F. Köppen'. p. 24
(...) As empregadas mudaram os prato se porcelana de Meissen, de bordas douradas. A Sra. Antoinette não afastava os olhos delas, e Ida Jungmann gritou ordens pelo porta-voz que ligava a sala de jantar com a cozinha. Sirva-se o peixe. p. 24
(...) Mudavam-se novamente os pratos. Surgiu um enorme presunto, cor de tijolo, defumado e cozido, acompanhado por um molho de cebolinhas pardo e avinagrado. Junto seguia-se tal quantidade de legumes que todos os presentes teriam podido servi-se de uma única travessa. Lebrecht Kröger encarregou-se do ofício de trinchar. Erguendo levemente os cotovelos, estendeu os dedos indicadores pelas costas da faca e do garfo e cortou com circunspeção as fatias macias. Servia-se também a 'panela russa', obra prima da Consulesa Buddenbrook, uma mistura de frutas conservadas em álcool e de gosto picante. p. 28
(...) - Por deus - disse Hoffstede,  arrumando no garfo uma porção de presunto, brócolis e batatas, que enfiou na boca, alçando as sobrancelhas. p. 28
(...) A fisionomia do Pastor Wunderlich, porém, permanecia alva, fina e animada, apesar de beber calmamente um copo depois de outro. p. 30
(...) Achavam-se sentados em pesadas cadeiras de espaldares altos, comendo coisas boas e pesadas, servidas numa pesada baixela de prata, e bebendo bons vinhos igualmente pesados. E, nos intervalos, os presentes conversavam. p 30
(...) As Senhoras acompanharam esse rumo da conversa por pouco tempo. A Sra. Kröger estava com a palavra, explicando, da maneira mais apetitosa, qual o melhor método de cozinha carpas em vinho tinto...
- Depois de cortadas em pedaços regulares, minha querida, ponha-se na caçarola, com cravos-da-índia, cebolas e biscoitos. Depois bote tudo no fogo com um pouco de açúcar e uma colher de manteiga. Mas, pelo amor de Deus, minha querida, não as lave, deixe todo o sangue dentro... p. 30
(...) - Ei, Christian, não coma tanto - gritou subitamente o velho Buddenbrook . - A Thilda não faz mal comer muito; esta menina come por sete homens...
Era verdadeiramente admirável o apetite que desenvolvia aquela criança magra e taciturna de rosto comprido e um tanto velho. Ao lhe perguntarem se queria mais um prato de sopa, respondeu vagarosamente e humildemente: - si...im  fa...z  fa....vor! - Do peixe e do presunto escolhera duas vezes dois pedaços com grandes porções de legumes. Inclinada sobre o prato, míope e diligente, devorava tudo; sem pressa e sem falar, engolia bocados enormes. (...) comia com o apetite instintivamente voraz de gente pobre que tem uma mesa franca em casa de parentes ricos; comia com um sorriso impassível, cobrindo o prato com as boas coisas, paciente, tenaz, faminta e magrinha. p.31-32
(...) Chegou em duas grandes travessas de cristal, o pudim de Pletten, uma construção de camadas de macrones, framboesas, biscoitos e creme de ovos. Na outra ponta da mesa levantou-se uma chama azulada: as crianças recebiam a sua sobremesa preferida: um pudim com molho de rum em chamas.
- Thomas, meu filho, por favor - disse Johann Buddenbrook, tirando do bolso da calça um molho de chaves. - Na segunda adega, você sabe, na segunda prateleira à direita, duas garrafas da que ficam atrás do Bordeaux tinto...
E Thomas, que já sabia do que se tratava, foi correndo e voltou com as garrafas inteiramente cobertas de pó e de teias de aranha. Mal escoara desse vasilhame pouco vistoso o vinho malvasia cor de outro, velho e doce, que enchia agora os copinhos de cristal, e já Wunderlich se levantava. Os convivas emudeceram. O pastor, de copo na mão, proferiu um brinde eivado de graça (...)
- E agora, meus prezados amigos, façam-me o favor de esvaziar comigo um copo deste líquido delicioso, num voto de prosperidade para os nossos venerados anfitriões, no seu magnífico novo lar... bebamos à prosperidade da família Buddenbrook, dos seus membros presentes e ausentes... Vivant! p.33
(...) Mandou que Thomas fosse buscar mais uma garrafa de malvasia, pois errada no cálculo de que duas seriam suficientes. p. 34
(...) No fim do seu discurso o pudim de Pletten estava quase consumido e o malvasia para acabar. p. 34
(...) Deixou a sala rapidamente, seguindo a empregada que acabava de servir manteiga, queijo e frutas. p. 36
(...) Ele mesmo, Friedrich Grabow, não era daqueles que desdenham os perus recheados. Ainda hoje, o presunto ao molho de cebolinhas... diabo, como estava delicioso!... e depois - já quase sem fôlego - esse pudim de Pletten... macrones, framboesas e creme de ovos, sim senhor... p. 37

(...) No salão há charutos para quem quiser e um cafezinho para todo mundo, e, se minha mulher for generosa, teremos também um copinho de licor... p. 38

Thomas Mann em "Os Buddenbrook", Editora Nova Fronteira

sexta-feira, 23 de maio de 2014

COMIDA ÁRABE EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

CARDÁPIO

* "Carne moída com semente de trigo"
KIBBEH  (kibe) - Bolinho de carne de cordeiro moída com trigo  (bulgur).
KIBBEH NAYE  (kibe cru) - Carne moída crua com trigo (bulgur).

* "Outros guisados"

* "Recheio bom em abobrinha ou em folha de uva" abobrinha recheada ou charuto
MEHSHI - Vegetais recheados com carne picadinha ou moída. Em algumas receitas usa-se a carne misturada com arroz no recheio. O mais comum é usar berinjela, abobrinha, folhas de uva, de couve ou repolho.

*  "aquela moda de azedar o quiabo - supimpas de iguarias"
BAMIA (Okra o Gombo) - É o nosso quiabo. Fresco ou em conserva, é servido como acompanhamento de carnes e frango.

* "Os doces, também"
LOKUM (loukoum, loukoumi, Loukoum, turkish delight) - Doce de origem turca, cujo nome original completo é "rahat lokum", que se difundiu por todo o mundo, sendo muito apreciado. Antigamente, chamava-se de Lokum a uma grande variedade de doces turcos, a maioria deles elaborados a base de açúcar e cremes, conhecidos, também, por “delícias turcas”. Com o tempo, a denominação de Lokum se restringiu a um único produto - uma espécie de geleia cortada em cubos e recoberta com açúcar de confeiteiro, feita de amido, açúcar e água. Um processo especial durante sua elaboração lhe confere uma textura suave e elástica. Pode ter vários aromas e cores. O mais tradicional é rosado e aromatizado com água de rosas. Algumas receitas incluem frutos secos picados, como nozes, avelãs ou pistache. É um quitute fino, muito usado em festas, para presentear ou para receber convidados.
MAZAHER - Destilado não alcoólico de flor de laranja - água de laranjeira. Usado no preparo de doces e sobremesas como a macedônia e laranja com canela, etc... Água de flor de laranjeira.
MÂ EL WARD  - É um destilado de flor de rosas, muito aromático, usado no preparo de doces. Água de rosas.

TEXTO

"Aí namorei falso, asnaz, ah essas meninas com nomes de flôres. A não ser a Rosa'uarda -  môça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, (...) - ela era estranja, turca, eles todos turcos, (...) diversas vêzes me convidou  para almoçar em mesa. O que apreciei - carne moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o quiabo - supimpas iguarias. Os doces, também. (...) Tôda a vida gostei demais de estrangeiro."


João Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: Veredas" p. 110, 2º edição: Livraria José Olympio