A MESA

"(...) Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?"
Carlos Drummond de Andrade em "A Mesa"

terça-feira, 3 de junho de 2014

"AZEDOS E INFELIZES FRUTOS": desamor e comida ruim em Clarice Lispector


O conto "Feliz Aniversário" é cortante. Ele fatia a nossa alma e as relações familiares com a mesma eficiência de um açougueiro destrinchando uma peça de carne.
Nesta narrativa curta, Clarice, reflete como a comemoração por obrigação se reflete negativamente na comida. É para comer entalado de ódio, remorsos, queixas, resignações e pela desunião. É para comer, mas ficar sonhando com o jantar, se tiver!




CARDÁPIO
* Croquetes
* Sanduiches (presunto)
* Bolo açucarado
* Ponche
* Coca-cola
* Vinho

TEXTO
"Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta." p. 72
"(...) No centro havia disposto o enorme bolo açucarado" p. 72
"Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer fritura, eles riam inquietos (...)" p. 74-75
"Na cabeceira da mesa já suja, os corpos maculados, só o bolo inteiro - ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos." p. 75
"(...) ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforo sequer para a comida da festa, que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. E então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, 'Vamos! todos de uma vez!' - e todos de repente começaram a cantar alto como soldados (...)." p. 75
"A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco." p. 76
" - Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! Assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina." p. 76-77
"Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. (...) As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam de desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda." p. 77
"Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou" p. 78
"O troco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz  aqueles seres risonhos fracos, sem austeridade?" p. 78
" - Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.
- Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosamente a neta roliça e baixinha.
- Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. Que diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy!, ordenou." p. 80
"A nora de Olaria (...) examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga (...)" p. 81
"As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias de expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome (...)" p. 81
" - Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas." p. 82
"Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela (...)" p. 86

Conto "Feliz Aniversario" em Laços de Família de Clarice Lispector. Ed. Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1994

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