O conto "Feliz
Aniversário" é cortante. Ele fatia a nossa alma e as relações familiares
com a mesma eficiência de um açougueiro destrinchando uma peça de carne.
Nesta narrativa curta,
Clarice, reflete como a comemoração por obrigação se reflete negativamente na
comida. É para comer entalado de ódio, remorsos, queixas, resignações e pela
desunião. É para comer, mas ficar sonhando com o jantar, se tiver!
CARDÁPIO
* Croquetes
* Sanduiches (presunto)
* Bolo açucarado
* Ponche
* Coca-cola
* Vinho
TEXTO
"Zilda estava na
cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de
Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de
Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não
encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca
aberta." p. 72
"(...) No centro
havia disposto o enorme bolo açucarado" p. 72
"Então, como se todos
tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar
de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa
sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de
animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O
ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura
quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a
aniversariante, que não podia comer fritura, eles riam inquietos (...)" p.
74-75
"Na cabeceira da mesa
já suja, os corpos maculados, só o bolo inteiro - ela era a mãe. A
aniversariante piscou os olhos." p. 75
"(...) ninguém se
lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforo sequer para
a comida da festa, que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o
coração revoltado. E então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com
muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou
surpreendidos, 'Vamos! todos de uma vez!' - e todos de repente começaram a
cantar alto como soldados (...)." p. 75
"A aniversariante
olhava o bolo apagado, grande e seco." p. 76
" - Parta o bolo, vovó!
disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! Assegurou incerta a
todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e
curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou
na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a
frente, deu a primeira talhada com punho de assassina." p. 76-77
"Em breve as fatias
eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. (...) As
passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam de
desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda." p. 77
"Na cabeceira da
mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A
aniversariante piscou" p. 78
"O troco fora bom.
Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa
alegria. Como pudera ela dar à luz
aqueles seres risonhos fracos, sem austeridade?" p. 78
" - Me dá um copo de
vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito,
cada um com o copo imobilizado na mão.
- Vovozinha, não vai lhe
fazer mal? insinuou cautelosamente a neta roliça e baixinha.
- Que vovozinha que nada!
explodiu amarga a aniversariante. Que diabo vos carregue, corja de maricas,
cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy!, ordenou." p. 80
"A nora de Olaria
(...) examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga
(...)" p. 81
"As pessoas ficaram
sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à
espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias de expectantes, com um sorriso
amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome
(...)" p. 81
" - Será que ela
pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas
profundezas." p. 82
"Enquanto isso, lá em
cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à
cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje
não vai ter jantar, meditava ela (...)" p. 86
Conto "Feliz
Aniversario" em Laços de Família de Clarice Lispector. Ed. Francisco
Alves: Rio de Janeiro, 1994